A impressão é que o ser humano conquistou o “impossível”. Sabemos voar como pássaros, navegar sob as águas como peixes, correr mais rápido do que coelhos e capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis.
Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena tela eletrônica.
Melhor do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é distingui-la pelas eras agrícolas, que durou 10000 anos; industrial, nos últimos 100 anos; e agora, cibernética.
Johannes Kepler, nascido na Alemanha em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos – que acreditavam ter o Universo uma natural simetria – descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador, bastariam quatro segundos.
Kepler, que escreveu o livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se imaginasse quanto tempo poderia poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada vez mais de menos tempo.
Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos o máximo de informação no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operação digitais. Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a “coleira eletrônica” impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma opinião e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais.
Porque precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros velozes desafiando as curvas da morte.
Nossos heróis estão distantes da arte musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis. Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da “pós-modernidade” são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o Guiness Book of the Records. Pelé fez 1000 gols. Michael Jackson coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao solo que qualquer outro mamífero.
Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos, o amor? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas.
Frei Betto.
8 comentários:
Pois é, Pablo: se parafernália eletrônica curasse mal-estar, todos estaríamos bem...
Abraço.
Pois é, Lívio. O interessante do texto é mostrar que acontece exatamente o contrário. As coisas realmente importantes sempre estão em segundo plano. Vamos ver até onde isso vai.
Abraço.
Querido Pablo!
Que belíssimo texto! Você tem tanta precisão nas palavras! Da leitura desse texto lembrei de um poemas de Drummond, chamado "As viagens". Não sei se vc conhece, mas fala da incansável saga humana em colonizar, humanizar todo o universo. Mas, "bicho da terra pequeno" não é capaz de conviver em harmonia com seus pares. Para tanto, Drummond finaliza:
"...só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver."
Grande Abraço!
Érica
http://blogcinzadashoras.blogspot.com/
Olá Érica,
Grande Drummond. O poema de fato é belíssimo. Sobre "Os sonhos de Kepler" é um magnífico texto também, mas lembrando que é autoria de Frei Betto, outro grande pensador.
Grande abraço.
Bem interessante teu blog, se puder apareça no meu. Também estou no makeoff.
Nelson,
Obrigado por conferir meu blogue. Vou sim ao seu também.
Grande abraço...
O texto me lembra da obsessão contemporânea pelo futuro, pela movimentação incessante das coisas, dos pensamentos...Ai de quem não sabe que o futuro foi há 1 segundo, e que o dia que nunca chega é justamente o amanhã. Abençoados sejam os que vivem o amor a cada instante dentro de si, quietos, calados, parados a contemplar...
Sim Fê,
Abençoados somos...
Postar um comentário