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11/11/2011

COMO SOBREVIVER A UM VELÓRIO

Por Fernanda Wenceslau

Se você tem ou teve uma pessoa querida nesta existência, já passou  ou irá passar pelo que a maioria considera o “pior dia de suas vidas”: o dia em que se perde esse alguém.
Não é bem assim.
A partir do momento da triste notícia, passando por todo o ritual de velório até chegar o enterro, tem-se na verdade o melhor dia do resto de sua vida sem aquela pessoa.
O telefone toca (ou abrem a porta do seu quarto como se a casa estivesse pegando fogo) e alguém te conta aquilo que você não esperava, ou já sabia que ia acontecer mas fingia ignorar.
A boca fica seca, a garganta fecha, o coração dispara, o corpo treme; enfim, todo o sistema nervoso caridosamente te prepara para a luta ou a fuga.
Não havendo uma floresta enorme num raio de cinco metros para se esconder, você joga uma água no rosto (ou até consegue tomar banho, pois a acetilcolina disparada no sangue se presta a esse favor) já pressentindo o que te aguarda.
Com a autoridade de quem já velou um casal de avós do jeito tradicional, em casa, e recentemente teve o pai como ator principal num desses velórios modernos, tudo high-tec, digo que invariavelmente estão lá certas figuras clássicas, pra não dizer bizarras, as quais contribuem muito para que este não seja o pior dia do mundo.
Primeiro você dá de cara com uma beata (pode ser a solteirona da família ou só uma conhecida) chorando histericamente ao lado do caixão, e quando ela te vê faz aquela cara de tragédia e de quem nunca mais viverá feliz.
Dica 1: finja que esqueceu algo e retorne imediatamente, ou receberá um abraço que te deixará perfumado pelas próximas semanas com o aroma mais doce da história da Avon.
Lá pelo meio do “evento” aparece um político (que até hoje você só tinha visto na TV em época de campanha). Ele aperta sua mão, diz “meus sentimentos” e sai batendo nas costas das outras pessoas.
Dica 2: enquanto se pergunta “sentimento de quê?” e “eu te conheço?”, dê meio sorriso sem mostrar os dentes e engula a indignação pela hipocrisia.
Enquanto o dia (ou noite) se arrasta lentamente, um sem-número de “amigos” que você não via há mais de três anos aparecem e aí, mais uma vez, o menos íntimo costuma ser o que mais chora. Naquele momento todos querem te ajudar, te carregar, te alimentar e se colocam à disposição para qualquer coisa. Eu nunca me senti tão rodeada e amada por meus amigos como no dia em que meu pai morreu.
Dica 3: aproveite-os bem antes que desapareçam novamente por mais três anos.
Por fim, mas não menos importante, aparece um bêbado. Ele tomba a bicicleta no meio-fio, coça a cabeça e com toda sua honestidade ébria vai entrando no meio das pessoas procurando onde está o café.
Dica 4: se tiver a oportunidade que eu não tive, pegue a bicicleta e dê uma volta no quarteirão, pois sentir o vento no rosto ajuda a desestressar pra caramba.
Chega a hora de sair para o cemitério (a essa altura é tudo que você quer), e... adivinhem: não se pode ainda fechar o caixão porque os parentes de Brasília pegaram a rodovia e estão para chegar a qualquer minuto (impressionante como todo pobre tem um parente em Brasília).
Dica 5: respire fundo e pense que está quase acabando, que em um minuto eles estarão lá. Ou faça como eu fiz: sente-se com a cabeça entre os joelhos e chore.
A essa altura estava me sentindo muito mal pelo meu pai, que era daqueles que só de olhar pra ele já perguntava: “Quê que foi, quê que foi, quê que há...”, bem assim, totalmente Seu Madruga. Imagine todo mundo encarando o coitado o dia inteiro e ele sem poder se defender.
Dica 6: nessa hora ajuda muito imaginar o que o seu ente querido faria. Se era uma pessoa que em vida expressou dar importância a esse momento, ótimo. No meu caso, vi meu pai mandando todo mundo ir à merda e acabar logo com aquela palhaçada. Sério, gente, o homem detestava ser encarado.
Uma vez lacrado o túmulo, você está ali da mesma forma como acordou com a notícia: de pé, tão anestesiada que nem sente a chuva caindo, atônita, exausta demais para esboçar qualquer reação. Tudo que você pede é para algum filho de Deus tirar você dali, daquela muvuca, daqueles zumbidos repetitivos de “agora descansou, era isso, era aquilo, o escambau...” ( fenômeno estranho: todo mundo que morre, de repente vira santo).
Dica 7: se não quiser ficar uns quarenta minutos em um carro parado devido ao trânsito infernal, ops, quer dizer, tradicional do cortejo fúnebre, saia do velório enquanto os parentes de Brasília se despedem e chegue primeiro ao cemitério.
Finalmente você senta em um bar,  vira um copo e vê que está cansado demais até para ficar bêbado. Chega em casa morrendo de  medo de não dormir, mas desmaia tão profundamente como só as crianças conseguem fazer.
Dica 8: aproveite para pedir a bebida mais forte e nojenta que nunca teve coragem de experimentar, pois você não estará sentindo o gosto de coisa alguma.
No dia seguinte você acorda e a beata já está em outro velório, o político corre atrás de seus votos, os amigos se escondem atrás do feicibuque e o bêbado, já sóbrio, se encaminha para o boteco.
E é aí, no dia seguinte, quando também os parentes já voltaram pra Brasília,  que VOCÊ (que perdeu seu pai/mãe/filho/irmão/amigo/marido/namorado) começa realmente o seu velório. Percebe realmente o que de fato aconteceu e o que isso representa. Você relembra o dia anterior como um sonho maluco de uns dois minutos, e diante da eternidade sem a pessoa que você perdeu, até gostaria de voltar pra lá.
A partir daqui, infelizmente, não há mais dicas. Não há um norte, um porto ou sequer uma luz. É aqui que se abre o berreiro em posição fetal e se sente milhares de lâminas afiadas atravessando o peito. É nesse ponto que somem as piadas e quem realmente se importa está te esperando, sabendo desde o início que você não era tão forte assim.
Quem irá te ajudar não será a beata de lágrimas abundantes nem o político cheio de sentimentos. Pode avisar em casa que vai sobrar para quem você mais ama, para aquele que te acompanhou em silêncio e que só conseguiu se comunicar pelo olhar.
Porque sob essa perspectiva, quando a ficha cai e some o efeito da confusão, você se dá conta de que o dia em que se morre alguém não é nem de longe o pior dia da sua vida, perto daqueles repletos de ausência que virão.

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Fernanda Wenceslau, além de psicóloga, é alguém que passou pela experiência de perder um pai, um amigo confidente e um anti-herói, todos reunidos na mesma persona.

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Este é um relato extremamente pessoal, e não pretende ser de forma alguma generalista. Tampouco houve intenção de ofender ou desmerecer a seriedade dos rituais, das variadas reações de tristeza e das homenagens que as pessoas prestam aos seus falecidos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Fê, adorei o texto, e é verdade mesmo... infelizmente o velório vem é depois, quem dera se fosse somente naquele dia o luto, o velório, a saudade.... isso é pro resto da vida....
Bjus gigante Naty!!!

Fernanda Wenceslau disse...

Valeu, Natália. Minha mãe disse algo na época que não entendi e hoje sei que é verdade: quanto mais o tempo passa, pior fica. A saudade é para sempre...
Bjo grande pra vc.

PS: Pablo e eu estamos no aguardo daquele churrasco, hein!!! rsrs