Por
Joel Rufino dos Santos
Palavras,
como tudo, nascem, vivem e morrem. Aliás, é para isso que servem os historiadores:
mostrar como um país, um deus, uma palavra se transformam em outros, parecidos,
mas diferentes. De passagem, reconheçamos que os historiadores também nos divertem.
Hoje
em dia, muitos se aborrecem quando chamados de negros, crioulos, escuros, de
cor etc. Exigem o afrodescendente (ou afro-brasileiro). Outros
ridicularizam o termo, se aborrecem com sua catadura politicamente correta.
A
palavra afrodescendente tem menos de 30 anos. A geração anterior se chamava a
si de negros, rejeitando os apelativos de cor, preto, escuro, moreno etc. A
mudança dessa preferência não foi aleatória, correspondeu a mudanças em outros
setores da sociedade. A economia brasileira se tornou competitiva, surgiu um
movimento negro, a África ganhou prestígio mundial, o mito da democracia racial
brasileira virou pó etc. nesse meio tempo, a ideia de Brasil continuou
parecida, mas ficou diferente. Essa nova ideia, no que respeita aos negros
(afrodescendentes), trocou o nome antigo pelo novo.
Negros
politizados e mídia popularizaram o termo afro-brasileiro. A África, até há
pouco tempo, não era uma referência popular no Brasil. Só lembravam Tarzan,
Jane, Lothar. Para a maioria dos negros brasileiros, sua ascendência africana
nada representava, tal a ignorância sobre o continente africano. Hoje, não.
Lembra, por exemplo, Nelson Mandela.
Em que
somos africanos? Podemos, de verdade, usar a palavra afrodescendente para nos
identificar?
A
UNESCO está relançando no Brasil a História Geral da África. Os mais
conceituados africanistas nos mostram como as populações africanas mudaram
desde a pré-história até hoje. Descobrimos nessa obra monumental, em vários
volumes, que há muitas Áfricas dentro da África; como há muitas Américas dentro
da América; Ásias dentro da Ásia; e Europas dentro da Europa. Na África há povos
que nunca se conheceram, culturas que nunca se cruzaram.
A questão
se repõe: somos afrodescendentes de quem?
Temos
que decompor a resposta. No plano genético, os brasileiros descendem em boa
parte de africanos. Mas não é simples, como parece. Primeiro, todos os seres
humanos descendem, genericamente, de africanos. Segundo, todos os brasileiros
descendem, em graus variáveis, de africanos.
Valores
e hábitos africanos continuaram no Brasil, entrelaçados, por vezes fundidos, a
europeus e indígenas. A civilização brasileira, isto é, a nossa maneira de ser,
dá continuidade à africana, em outro ambiente (a América) e em outro tempo (os
tempos modernos). Os brasileiros, e não só os negros, são, em certo sentido,
neo-africanos. Quanto à dinâmica histórica, Padre Vieira lembrou que sem Angola
não haveria Brasil; e sem o tráfico, para não ir longe, o capitalismo
brasileiro não teria deslanchado.
A palavra
afrodescendente é, portanto, verossímil e aceitável. Mas há um problema. A África
e o Brasil mudaram muito desde que existem. E se, ao invés de nos atermos a certos
valores e hábitos, quisermos realçar o que mudou? Talvez, então, seja
preferível a palavra da geração anterior: negros. Só para os religiosos há uma
Palavra verdadeira. Para os historiadores há palavras, cada uma com sua
verdade.
Joel
Rufino é historiador.
2 comentários:
Olá Pablo,
muito interessante este texto! O autor (patense? perdão pela ignorância!) dissertou sobre o tema de maneira sóbria, lúcida e tranquila. Você pode demorar a postar, mas quando o faz, acerta na mosca.
Abração,
Chris.
ps: e as apresentações? Não se esqueça de divulgá-las!
De fato, Chris.
O texto é bastante lúcido.
Sobre o autor, ele não é patense. É carioca. É um grande estudioso da cultura africana e acompanho alguns de seus textos pela revista "Caros Amigos".
Agradeço imensamente por conferir.
E as apresentações, assim que tiver alguma em vista, aviso sim. Há algum tempo não fazemos shows, infelizmente.
Grande abraço.
Postar um comentário